A morte de Sócrates, pintura de Jacques-Louis David

De: Maxwell
Sr. Medeiros,

É bom saber que está iniciando seu projeto de ter uma casa, consigo imaginar o trabalho que deve estar tendo para prosseguir com suas leituras e o fatigante trabalho braçal, mas também imagino o prazer que deve ter em construir algo com suas mãos. Sua carta anterior me trouxe certa satisfação por estarmos nos entendendo, terrível é quando falta compreensão adequada do que as pessoas dizem ou do que pretendem esclarecer. Este é um dos meus textos menos críticos, o diálogo mais me inspirou reflexão do que confronto. Sei que o senhor terá mais a acrescentar ao debate, então aguardo suas considerações. 
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Eu me perguntei várias vezes, se estando no lugar de Socrátes, preso e a espera da morte, se não teria uma atitude diferente da dele, ou seja, se não fugiria com espírito livre e romperia os grilhões da cidade. Eu não encontrei certeza sobre uma definitiva resposta. Sócrates, disperso de qualquer dúvida, diz que seu compromisso com a cidade é maior do que sua própria vida. Um olhar mais aguçado pode considerar isso extremamente comunista, mas não é simplesmente comunista, isto tem relação também com a justiça de um homem, e com as leis de uma cidade.
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Esse homem encarcerado que passou muitos dos seus dias procurando pela justiça nas ruas de Atenas, agora caminhava nas ruas de sua própria morte, ainda a procura da justiça. Criton que estava preocupado com sua reputação caso nada fizesse, recebeu de seu amigo a recomendação de que fechasse os ouvidos para os gritos daqueles que pouco entendiam sobre justiça, e se atentasse, para os legisladores, e para aqueles que sabem o que é justo. Para ele, Criton tinha um grande ardor, e grande vazio de retidão.
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A morte é uma certeza para todos nós, e por mais cautelosos que sejamos podemos ser tão surpreendidos pela morte como o somos pela vida. Já que estamos dispostos neste fragmento de espaço-tempo, a que chamamos vida, devemos escolher a melhor forma de vivermos. Sócrates acredita nisto, tanto por zelar da vida, quanto por zelar da existência após sua morte.
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Uma das coisas mais valorizadas na Bíblia é a integridade, a ideia de um homem que tem seu coração e sua mente totalmente dispostos a seguir incondicionalmente ao bom caminho e não recua ante a face do abismo. É louvável em Sócrates o desejo de morrer de forma íntegra, “viver com honra e viver conforme a justiça”. Discorrer sobre a covardia de um homem incrédulo ante a morte, é como dizem: “chover no molhado”.  
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A questão principal do diálogo pode ser descrita em uma frase: “a cidade pode ser traída?” Ao chegar nesta esquina do diálogo vê-se que a cidade não é tratada como uma coisa, mas como uma pessoa. Podemos trair a quem nos educou? Podemos virar as costas a quem nos deu segurança? Podemos nos rebelar contra quem nos alimentou? Se um pai põe seu filho de castigo por acreditar que o menino disse impropérios, devemos esperar que o menino fuja de casa, ou que ele se submeta a decisão paterna? O agravo da discussão é que Sócrates não será apenas privado de ir ao cinema, ele será obrigado a deixar de viver. É evidente que a República em que Sócrates viveu cuidou de coisas demais, deu coisas demais, e agora resta a Sócrates grande gratidão, mas curiosamente a cidade teve tanta relevância para ele que o mesmo chega a dizer que esta civilização é mais relevante que seu próprio pai. Aqui são demonstrados os perigos de uma cidade paterna, de algo que ocupa um lugar que não lhe pertence e que não lhe é apropriado, algo que não apenas se apossa da vida dos homens mas toma também o significado de suas partidas.
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Enquanto Sócrates se orgulha de ter as leis da cidade como soberanas, Jesus, O Cristo morre não por uma cidade, mas por homens, e quando se dirige as autoridades, diz que a justiça que necessita obedecer não está nas mãos de Pilatos, mas nas de Deus, seu verdadeiro Pai.
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A liberdade que sutilmente proponho não nos livra ao todo do problema do diálogo. Mesmo que a cidade não tome o lugar de nossos pais, até os mais liberais (excetuando os anarquistas e derivados) compreendem que é dela o dever de julgar e de punir. Mais uma vez: o que faz o homem quando são injustas as leis? Eu gostaria de responder com toda liberalidade, mas se não me pesam os grilhões da cidade, me pesa o cristianismo. Embora não seja consenso entre os cristãos as causas de desobediência civil, me parece que, no que não diz respeito a prostrar-nos a cidade, devemos obedece-la.
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Alguns dirão que quando uma cidade deixa de realizar seu papel, e passa a agir injustamente, ela se torna ilegítima e então é dever não obedece-la ou revogar sua autoridade. Creio ser difícil tal constatação uma vez que sabendo das mais injustas, perversas e diabólicas ações de Nero, a carta paulina diz “pois quem resiste à autoridade resiste a ordenação de Deus” e se ausenta de recomendação quanto a possibilidade de rebelião. 
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A relação que o homem possui com o Estado sempre foi e sempre será de difícil compreensão. Sócrates deixa a questão para as mãos da divindade, e do destino; não fazem de forma muito diferente os cristãos, com a divindade, e a providência. 

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