Do Χάος ao Sobrenatural

Do Χάος ao Sobrenatural

A Dúvida de Tomé, 1599, Caravaggio

Cháos não é bagunça.
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Sei que existe toda a mitologia para nos confrontar e explicar, em poucas linhas poéticas, o que é o Caos. A primeira configuração transcendente da organização de um pré-cosmos, uma organização anterior a organização definitiva em um sistema natural infinito. Só nesta introdução ficamos preocupados com a nossa capacidade de interpretação de uma palavra tão recorrente em nossos dias, Caos não é bagunça, Caos não é desorganização.
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A resposta para essa palavra que mais me satisfaz é a interpretação de Deleuze, porém citá-lo é chamar para mim uma atenção de autoridade, como se eu realmente soubesse o que ele estava falando quando chama a existência de Caótica. O mundo é um verdadeiro Caos, mas esse Caos não é o caos que falamos o tempo todo. Estou sendo redundante, né?
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Não é difícil perceber, em autores abertamente nietzscheanos, que eles possuem um problema pessoal com Platão. O centro desse icônico embate reside em uma interpretação quase que psicológica, afinal, Platão divide o mundo em duas partes, um mundo real e um mundo de ilusões, e eu sei que você sabe que o mundo real é o mundo das ideias, o mundo realíssimo, onde realmente reside o conhecimento. Na visão de Nietzsche Platão só cria o mundo das ideias por não conseguir confrontar o mundo real, o mundo tão bem interpretado por Heráclito no fragmento: um mesmo homem não pode banhar em um mesmo rio duas vezes.
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É abertamente expresso o descontentamento de Platão pela ideia de Heráclito, se o fluxo da vida é realmente tão incontrolável, ao ponto de em poucos segundos nós mudarmos, então o conhecimento nunca seria possível, porque nós precisamos de padrões. Se eu chamo o lápis de lápis é porque existe um lápis ideal que me garante que esse nome permaneça o mesmo em diferentes objetos que seguem um mesmo padrão. Deleuze diz que consegue imaginar Platão ficando assutado com o devir de Heráclito, contemplando o mundo e negando-o com medo da realidade, ao ponto de criar um conceito que é potencialmente destrutivo em si, se esse mundo não importa,é uma ilusão, por que eu devo me preocupar com essa vida? Com essa natureza? Com essas pessoas? Com esse vocabulário? A vida de Platão é provar que o conceito de mundo ideal não é destrutivo, e ele falha.

Uma acusação grave

Onde Platão falhou? É possível traçar a concepção de mundo, principalmente prevista na civilização grega antiga representada em Platão, mais do que em Aristóteles, um ideal de natureza infinita, uma natureza que se autossutenta enquanto nós a consumimos. Nessa relação de consumidor e ofertante a natureza é concebida como eternamente ofertante. Até aqui podemos compreender o quanto a natureza é objetificada, mas estamos falando de um mundo antigo na visão de um único homem e bem, como se já não fosse problemática essa relação, Platão inaugura o dualismo mais forte de todos os filósofos antigos: A separação total de mundos.
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Essa separação de mundos é considerada por Nietzsche uma praga herdada e potencializada pelo cristianismo. Afinal, Cristo veio inaugurar um Reino que não é desta terra, certo? Você já ouviu essa história e é possível que muitos repitam esse tipo de coisa até hoje, cristãos sinceros confusos quanto o que devem ou não fazer no mundo, pois o Reino não é daqui. Veja o quanto uma leitura filosófica pode gerar confusões cruéis.
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Platão foi amplamente aceito na Idade Média, até mesmo antes da própria Idade Média, e uma boa parte dos conceitos platônicos são repetidos dentro das mais diferentes igrejas até hoje, e qual é a preocupação disso? O dualismo de corpo e alma, reino dos homens e reino de Deus, governo da terra e governo celeste, tudo isso é autodestrutivo. Veja o quanto as pessoas repetem a ideia de que um dia o mundo será destruído e condenado enquanto uma parcela de salvos será transladada para um mundo das formas na figura de anjos.
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É difícil ver a quantidade de cristãos que não percebem que o Filho de Deus foi ascendido com um corpo, totalmente igual ao corpo comum, tão igual que mesmo sendo um Corpo Glorificado, ele possui marcas e cicatrizes. Vocês conhecem essa narrativa, Jesus Cristo morre e ressuscita. Na ressureição ele come, bebe, anda, corre, possui as mesmas feições e é tão normal que os discípulos nem o reconhecem quando o veem, porque ele é só um ser humano. Mesmo com sua ascenção a promessa que fica é que ele retornará. E esse retorno não é para levar, mas para restaurar a terra que desde o início Deus criou como habitação do ser humano. Os seres humanos levados, são aqueles que sofrerão a condenação eterna e não os salvos.
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Diante disso, a acusação de dualismo ao cristianismo só se estabelece porque existe uma parcela considerável de cristãos que repetem as ideias platônicas. Este mundo não é o do conhecimento verdadeiro, ele é só ilusório. Foi essa interpretação guiada por uma má compreensão da realidade que tornou a nossa concepção de natureza, vida e humanidade, distorcida. E essa distorção é tão forte que podemos remontar os problemas ambientais dentro de uma interpretação cristã de realidade. [Existem muitos artigos de biologia e ciências ambientais que fazem esse trabalho, “A revolução industrial foi o primeiro grande impacto ambiental devido a uma má relação do homem com a natureza a partir da interpretação cristã de mundo reservado para a condenação”]
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O problema é que mesmo dentro da história da filosofia os herdeiros de Platão, não percebendo a destrutividade do dualismo, prosseguiram explicando um mundo ideal e um mundo real, um mundo acessível e um mundo inacessível, um mundo que se não existisse ainda poderíamos pensar, um mundo controlável, por ser inferior ao império racional humano da civilização ocidental, totalmente distinto dos irracionais orientais/ocidentais geográficos do novo mundo/africanos.
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A possibilidade de achar que podiamos ter o controle nos deu um pseudo-controle…

Sobrenatural

Voltemos a interpretação de Nietzsche em relação ao cristianismo: A potencialidade destrutiva do cristianismo [ocidental] é o seu excesso de controle, eles aparentam saber como o mundo funciona, afinal são filhos do dono, né? Mas e se o dono não revelasse como o mundo realmente funciona. E se o dono fosse tratado como realmente transcendente como as teologias sistemáticas dizem. O mundo seria expressamente lógico? Ou seria espantoso?
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O Sobrenatural é aquilo que o homem moderno não pode controlar, e isso aqui é Filosofia, amigos, não esoterismo. Porque a natureza é física, é calculada, é prevista, é controlada. A sobrenatureza não. Ela acontece. O ciclone-bomba não previsto, a onça no meio da mata, a cobra venenosa mordendo o futuro veterinário. A sobrenatureza não é a chama que queima a floresta ela é a fumaça que impede o avião. Ela não é soja plantada, ela é a seca e a doença atiçada devido a falta de cuidado com a natureza. A sobrenatureza é sempre o imprevisível, o milagre, a morte, o nascimento, o defeito, o inimigo, o amigo.
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Trocando em miúdos a sobrenatureza é a parte do mundo que se apresenta por si mesma, antes da explicação dos sintomas a doença já matava, antes da arma de fogo o animal já era mais poderoso que o homem, veja a sua pele sem couraça, suas presas sem força, sua mordida sem impacto, sua velocidade risível, quem é o ser humano? Um agente ridículo O nosso pseudocontrole nos mata e ainda assim achamos que podemos controlar a natalidade e nascemos estéreis, achamos que controlamos a saúde e surgem os cânceres, criamos a política e surgem as pandemias. A sobrenatureza, nestes termos não é um outro mundo é o nosso mundo se mostrando. Não é um dualismo, é uma explicação que precisa ser levada mais a sério.

Conclusões

Logo, o que é o Caos? Levando em consideração o que foi dito, entre seres humanos e natureza, o caos é o incontrolável. O papel da ciência é experimentar o incontrolável e organiza-lo em informação e conhecimento, o papel da arte é sentir o incontrolável e produzir afetos e conhecimento, o papel da filosofia é viver no incontrolável e trazer conhecimento e sabedoria. Ora, o medo de Platão que por algum motivo foi transferido para os cristãos, trouxe consigo uma compreensão da realidade triste e feia, uma perspectiva de controle sem qualquer consciência de si, olhe para você mesmo, você compreende em poucos segundos que não tem controle. Nós gostamos de opiniões seguras, métodos de organização de tempo, etc… Mas falo de algo maior, se Deus é transcendente, criou um mundo com todas as suas leis e especificidades, você pode controlá-lo? E se tudo fosse espantoso? Acho, e só acho, que é aqui que compreendemos o que é servir a todos e a tudo, em outras palavras, nós temos medo do Problema que é encarar um mundo que não é nosso, qual é a sua responsabilidade?