Interpretação como exercício espiritual

Sentado em seu escritório o filósofo de Rembrandt medita, em um quarto escuro, iluminado pela janela aberta tão próxima de seus livros e cadernos. Uma alusão ao processo do conhecimento salutar, a literal clareza das ideias. Em oposição, há um trabalhador organizando as brasas de um fogo que não ilumina o suficiente e é possível que nem esquentar esse fogo seja capaz. Uma alusão ao conhecimento sem paixão, talvez ação sem meditação. No quadro podemos enxergar uma pequena porta que parece menor que todos os personagens apresentados, uma escada que sobe para a desconhecida escuridão e há a possibilidade de interpretarmos a luta de classes marxista entre alguém que compra o tempo de seu trabalhador para iluminar suas ideias, todavia se quisermos deslocar essa percepção para a ideia de que estamos encarando dois filósofos? Ou dois homens comuns que trabalham, leem, meditam, conversam e que a pintura na verdade retrata dois momentos de um mesmo processo?

Proponho a última possibilidade de interpretação sem menosprezar qualquer outra que você, leitor, pode ter ao ver esse quadro. Estamos diante de dois momentos de um mesmo exercício.

A arte tal como Walter Benjamin trabalha é algo que nos aproxima do divino e, conforme a descrição bíblica, o Divino é “multiformemente sábio”. Logo, a grandiosidade da arte está na sua possibilidade de registrar o pluralidade em um momento singular. Por isso, digo que interpretar deve ser um exercício espiritual, não apenas intelectual, metódico, mas acima de tudo um cuidado holístico com seu ser.

A palavra Espírito tem algumas possibilidades etimológicas e buscando as semelhanças entre essas etimologias e excluindo intencionalmente as demais possibilidades pode-se dizer que Espírito é respiração, o hebraico רוח (ruah), o grego πνεῦμα (pneuma), o latim spiritus, possuem o “sopro”, a “respiração”, como traduções mais frequentes de suas ocorrências. Assim, espírito é a respeito de energia vital. Respirar é a parte palpável dessa energia que concretiza o conjunto de nossas faculdades, sejam intelectuais, físicas ou emocionais, sem essa categoria somos considerados cadáveres.

Voltemos a pintura, aquilo que o filósofo, lê, anota e medita, por um tempo limitado, o faz enxergar a luz do mundo. A realidade é sempre o objetivo do exercício intelectual, mesmo quando enfrentamos representações o efeito delas deve ser de uma produção de energia para o mundo, ou seja, uma cena de filme só alcança seu objetivo se o emocional do espectador é afetado e esse emocional se transforma em algo para o mundo, seja um olhar mais empático, ou um olhar mais revoltado que gerará engajamento em uma causa que é julgada como legítima, ou um olhar mais disposto para reinterpretar suas bases. A questão é que o quadro está montado para mostrar que a clareza de uma ideia está em seu tempo de exercício. Exercitar uma ideia é o mesmo que os antigos chamam de meditação.

Meditar é mergulhar no espírito, controlar a respiração, investigar dentre suas experiências a clareza do mundo. O espírito como conjunto das faculdades humanas é o local que todos temos acesso, na medida em que trabalhamos com paciência o amadurecimento de uma ideia, controlando o nosso impulso de respostas rápidas e fáceis, podemos respirar controladamente para nos percebermos como sujeitos dotados de saberes. Essa percepção ilumina nossas ações e nos prepara para a escuridão que enfrentaremos ao lidar com a ignorância pessoal e alheia. E é por isso, que considero o trabalhador que mexe com o fogo o segundo momento de um mesmo exercício.

Perceba que a pintura possui dois elementos misteriosos, o primeiro é a portinhola. Confesso que preciso de uma melhor contextualização, será que é uma típica porta de adega? Porão? Ou é uma porta para a rua? Em todo caso, posso partir do mais óbvio, é uma portinhola. Ela está situada atrás do homem que é iluminado pela janela, parece que é uma porta para a rua. Imagino que ela está na cena para demonstrar o esforço necessário de se diminuir, ou se humilhar, para viver a realidade. Dentro de casa, a meditação pode nos trazer clareza e coragem, mas ambas as características só serão importantes se pudermos exercitá-las no dia-a-dia, onde nossas ações são observadas e julgadas. A arrogância é a característica do acomodado, daquele que se exercita em seu conhecimento de modo raso, lesionando seus músculos por repetir os mesmos exercícios, atrofiando sua capacidade de ampliar seus horizontes. Interpretação deve sempre estar ao lado da humildade, porque só quem estuda sabe o quanto é demorado e, por vezes, desesperador ter consciência de que só sabe que nada sabe.

O segundo elemento misterioso é a escada. Por estar dentro da casa, parece que ela simboliza autoconhecimento. O canto escuro da mente, as memórias não visitadas, os traumas enraizados, as dores que gostaríamos de só fingir que elas não existem, ignorando as reações do corpo em nome de um falso estoicismo que não passa de imaturidade. A partir desse elemento misterioso é que penso que o trabalhador é outro filósofo no estágio de execução do conhecimento adquirido.

É inegável que qualquer estudo que façamos por conta própria não seja para reviver o prazer de conhecer. O conteúdo de nossos estudos revelam o tipo de pessoa que nós somos para os outros e quanto mais nos aprofundamos mais aprendemos sobre nós também. Estudo e meditação são processos semelhantes ao de comer e digerir, aprendemos o que nos atrai, o que é mais apetitoso, o que nós detestamos e o que nos faz passar mal. A partir de uma autoclareza podemos cultivar as ideias que iluminarão a parte profunda de nosso espírito, as brasas que parecem não aquecer pelo menos iluminam o suficiente para explorarmos o desconhecido andar superior, até que possamos conseguir construir uma janela que ilumine a realidade de nossos pensamentos profundos precisamos aprender a explorá-los com as brasas que temos.

Interpretar o exterior envolve revelar-se no interior, um jogo dialético se preferir, por isso é preciso levar a sério as obras que lemos, a música que escutamos, os filmes que assistimos, o tempo que dedicamos aos exercícios espirituais e físicos, porque tal como Platão deixa registrado em Protágoras, um mal ensinamento, vindo de um mal mestre, pode adoentar o espírito e um espírito doente é sempre mais difícil de curar do que o corpo. Um espírito doente se nutre de medo e violência, se torna um espírito que justifica seus excessos e, por fim, temos um ser estúpido e perigoso se manifestando.